12/10/16

Voluntário na Guiné 17: o assalto!

Mercado do Bandim.

12/9/16 - Com as minhas colegas voluntárias Edite (médica) e Rosário (enfermeira), embrenhei-me no Mercado do Bandim (que se estende por quilómetros ao longo da Avenida dos Combatentes da Liberdade da Pátria, prolongando-se pelas ruas e ruelas circundantes). Num ambiente animado, fomos comprando os ingredientes para um caldo de peixe, receita típica guineense (com um toque lusitano), que iria confecionar para um grupo de amigos.
E tudo corria bem até ao momento em que a Edite se baixou para escolher umas bananas que queria comprar. Sem nos apercebermos, um jovem deitou-lhe a mão ao fio de ouro e puxou-o até se partir, fugindo com ele.
A Edite gritou “Ai o meu fio, levou-me o meu fio!” E eu fazia gestos a explicar o que tinha acontecido, uma vez que grande parte da população só fala crioulo. Outros jovens puseram-se no encalço do meliante, entretanto desaparecido numa rua estreita e labiríntica, enquanto as vendedoras nos garantiam “Vão apanhar, vão apanhar!”.
Fiquei na dúvida se o iam apanhar ou dar-lhe uma surra, mas nunca uma frase incorretamente construída me soou tão bem!
Enquanto durava a perseguição, ia abraçando a Edite para a confortar e explicava a quem chegava, numa espécie de bilinguismo de palavras e gestos, o que se tinha passado.
Poucos minutos depois, apareceu uma parte do grupo perseguidor, dando, com entusiasmo, a boa-nova: “Encontraram, encontraram!” Logo depois, chegou o portador do fio, devolvendo-o à Elisa. Aí, uma vendedora gritou algo que não entendemos inicialmente, mas depois percebemos que tínhamos de dar dinheiro a quem tinha apanhado o ladrão. A Elisa tinha apenas umas moedas, mas a tal vendedora inflamadora das massas começou a gritar que não chegava e tinha de dar mais, no que foi secundada por outras vendedoras. No meio de uma algazarra intimidadora, rapidamente fomos cercados por todos os lados com a exigência de aumentarmos a recompensa.
Então eu, que tinha estado a acumular nervos atrás de nervos, passei-me dos carretos e resolvi agir. Abri os braços, levantei-os bem alto e gritei o mais alto que pude:
Esta senhora…” Aí, todos se calaram e olharam para mim, que era o que eu queria.
Recomecei a gritar: “Esta senhora é médica. Está a trabalhar no Hospital de Bissau e é voluntária. Não ganha nada. Não recebe dinheiro. Ok?
Aproveitando o silêncio que se instalou, acrescentei: “Eu sou professor de Português e estou a dar aulas a jovens guineenses no Centro Cultural Português. Não ganho nada. Não recebo dinheiro. Ok? Estamos aqui para ajudar e não para ganhar dinheiro. Ok?
O facto de eu ser professor não impressionou ninguém, mas o exercício da medicina sim, pois começaram logo a perguntar às minhas colegas: “Estar no hospital? Estar no hospital?”.
A Rosário, que já tinha tirado carteira da mão da Edite e a tinha guardado, dizia “Vamos embora, vamos embora!”. Várias pessoas seguiam-nos, agora com ar de admiração, e eu ia continuando a explicar que éramos voluntários e que não recebíamos.
Finalmente, saímos do mercado e adiámos a conclusão das compras para o tal caldo de peixe. Caldinho, já tínhamos que chegasse para uma tarde…
Uma coisa é inegável: em Portugal, nunca o fio teria sido recuperado!
P.s.: Quanto à vendedora de bananas, nunca mais a vimos. Perdeu o negócio com o desenrolar dos acontecimentos.

Abraço.

António

09/10/16

Voluntário na Guiné 16: histórias de bodes e de cabras!

Para que será o pau pendurado ao pescoço da cabra?

Trago-vos três apontamentos interessantes.
1. Em Bissau
Uma das primeiras histórias que me contaram foi a de um bode branco bissauense. O famoso ruminante dá nome à rotunda junto ao sítio onde reside: “rotunda do bode branco”.
Passei por lá e vi o animal ao vivo: um verdadeiro ancião de barbas brancas e ar filosófico. Disseram-me que os donos das cabras das redondezas as levam ao bode branco para um “tête-à-tête” de reprodução “garantida”…
2. Pelo país
As cabras encontram-se em todo o país e são transportadas de todas as maneiras: de bicicleta, mota ou no topo das candongas (carrinhas que transportam passageiros entre localidades). E lá vão elas amarradas, às vezes precariamente, com ar resignado e muito pouco filosófico...

3. Nas tabancas (aldeias)
Sempre que saía de Bissau via as cabras com um pau pendurado ao pescoço, na horizontal. Pensei que fosse uma forma de limitar os movimentos dos animais para não se afastarem. Para confirmar (ou não) a hipótese, perguntei a um amigo guineense. A resposta foi surpreendente…


A vara, estrategicamente colocada, impede as cabras de entrarem nas hortas. Basta colocar as vedações com espaços entre cada pau com uma largura inferior ao comprimento da vara colocada ao pescoço dos animais. Matemática simples e muito engenhosa!

Abraço.
António

08/10/16

Voluntário na Guiné 15: o corpo e a alma de Bissau!


Uma das fotos que mais gostei de tirar!

À primeira impressão, Bissau é uma cidade em autogestão (como todo o país) e a céu aberto…
O lixo e os esgotos marcam a paisagem. Não há contentores nem caixotes. O gesto natural é deitar para o chão. Existe recolha de detritos, mas é pouco eficaz.

E depois há as pessoas. Com pequenos negócios e a arte que o engenho aguça, são heróis numa odisseia de sobrevivência todos os dias. 

De sorriso fácil e um otimismo desconcertante, falam da esperança em dias melhores. Embora cientes da situação política complicada, da corrupção e da má gestão, têm um amor profundo ao seu país e orgulho em serem guineenses.
Após cinco semanas, na véspera de partir, dediquei a tarde à zona onde a atividade humana é constante e intensa: o mercado do Bandim. São quilómetros de lojas, bancas ou apenas panos no chão com pepinos (é a época deles), pimenta, feijão, frutos (poucos nesta altura do ano) ou mancarra (amendoim). Aqui e ali, em pequenos fogareiros a carvão, espigas de milho a assar tentam quem passa. Comprei mancarra, feijão, umas tiras de coco (para lanche ambulante) e pepinos (muito tenros e de excelente sabor, ainda duram cá em casa).
Depois de duas horas de deambulação labiríntica, alagado em transpiração e sob a ameaça de uma gigantesca trovoada, iniciei o caminho de regresso para o alojamento. 
Olhando à esquerda e à direita e para o céu (sempre diferente na luz, nas cores e nas formas, mas sempre magnífico), fui descendo a avenida e registando na alma, como um pintor de emoções, as últimas impressões...
 Um abutre vigia o negrume das nuvens...

 Ao fim da tarde, o céu pinta-se de ouro...

 Um urso gigantesco invade o céu...

Como uma pincelada, uma ave projeta-se no écran de nuvens...

Com o dia a acabar, o sol incendeia as nuvens...

Já com a saudade à espreita, senti-me um bissanense de corpo e alma!

Abraço especial para todos que tive o prazer de conhecer nesta aventura.
António

05/10/16

Voluntário na Guiné-Bissau 14: A distração-mor...

Embaixada de Portugal e o Instituto Camões.


Sou irremediavelmente distraído, o que pode ser problemático…
Último dia do curso em Bissau. O Comandante Madureira apareceu com o Lona (Tenente do exército guineense) na sala, mesmo quando a aula estava a terminar. Vinha à procura da minha colega Edite, que estava fora da cidade, e ofereceu-me boleia para o Bairro da Cooperação Portuguesa (onde eu estava alojado). Arrumei os papéis, peguei no saco de peixe fumado que uma aluna (a Mariama) me ofereceu e encaminhei-me para a saída, parando aqui e ali para corresponder aos cumprimentos que ia recebendo. Chegado à porta, encaminhei-me, quase sem olhar, para o jipe que ali estava estacionado. Pareceu-me que a pintura estava mais escura e achei o fecho da porta mais estreito. Mas nada me deteve. Abri a porta e entrei para o banco de trás. No interior, estavam dois jovens militares que nunca tinha visto. O primeiro sorriu e ajudou-me a pôr os papéis no banco. O outro parecia ter um ponto de interrogação em cada olho. “Olá, tudo bem?”, disse eu. “Onde está o Comandante Madureira?”, acrescentei. Ficaram a olhar para mim sem responder. “Mas este não é o jipe do Comandante?”, perguntei, desconcertado. Tinham acabado de acenar negativamente, quando ouvi o Lona gritar do lado de fora: “Professor, o nosso jipe está aqui à frente!”
Balbuciei um pedido de desculpas, peguei nos meus papéis e no saco do peixe e saí. Antes de fechar a porta, vi o que o banco ficara molhado, o que me deixou intrigado…
Quando cheguei ao jipe certo, o Comandante perguntou-me se eu sabia de quem era o jipe em que tinha entrado momentos antes. Quando respondi que não, disse-me, com um sorriso, que era do Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas da Guiné-Bissau. Fiquei sem fala!
Depois de chegar ao apartamento, percebi porque é que o banco do jipe VIP tinha ficado molhado. O saco do peixe estava húmido…

Abraço.
António

04/10/16

Voluntário na Guiné-Bissau 13: A Edite e a Rosário ao volante...

"Ó cabrinha, para onde vais? Vê lá..."

O convívio com os meus colegas de missão foi umas das coisas muito boas da minha aventura. Primeiro com o António Raposo (fuzileiro) e depois com a Edite (médica) e a Rosário (enfermeira). Todos pessoas bem-formadas e com sentido de humor. E tão ou mais destravados do que eu. Talvez a Edite seja a mais ajuizada, mas não tenho a certeza…
Se a condução do António esteve dentro dos padrões expectáveis, os casos da Rosário e da Edite merecem que me alongue na análise.
A Rosário a conduzir na capital era um sucesso: agarrava-se ao volante, cerrava os dentes, fulminava com o olhar quem se apresentasse à esquerda ou à direita (que em Bissau vêm carros de as direções), apitava, punha o pé no acelerador e lá íamos nós em direção à embaixada e ao hospital. Os (e as) polícias, quando ela se aproximava, quase sempre a mandavam avançar. Acho que tinham era medo dela! Quando algum táxi lhe apitava, não ficava sem resposta. "Porque é que me estás a apitar?", questionava ela, indignada. "Agora é que não passas!" E não passava mesmo!
"Porque é que me estás a apitar?"

Com a Edite era diferente. Conduzia sobretudo quando saíamos de Bissau. Condução serena e sensível.Também falava, mas era diferente.
Se via uma criança a caminhar na berma, enchia-se de preocupação. "Então miúdo, onde vais?" Se lhe dizíamos que a dita criança só ia ao longo da estrada, não desarmava: "Mas pode mudar de direção a qualquer momento!" 
Certamente influenciada pela crença (predominante no país) que atribui uma alma a cada elemento da natureza, dispensava aos animais um carinho especial: "Ó porquinho (tb cabrinha, cãozinho, patinho, pintinho...) para onde vais? Vê lá." Quando passávamos por galinhas que desatavam a correr em todas as direções, afligia-se mais e dizia-nos (a mim e à Rosário): "Olhem lá pra trás. Estão bem? Estão bem?" O "estão bem" referia-se às galinhas e não a nós...
Abraço.

António

02/10/16

Voluntário na Guiné-Bissau: pequenas coisas 1...


Ao contrário do que possa parecer, este não é um post sobre usos indevidos de língua portuguesa. A imagem (creio que recolhida no restaurante Bolama, em Bissau) mostra espírito de iniciativa, empreendedorismo, como agora é moda dizer-se.
Recorrendo a um português criativo, o cartaz não deixa de cumprir a função com que foi escrito, ou seja, informar os clientes com clareza sobre os serviços prestados. E está lá tudo que é exigível num documento informativo: quem, o quê, quando, onde, como…
Para um país onde apenas 13% da população conhece a língua portuguesa, nada mau. Logo, nota positiva!
Se o curso de língua portuguesa ainda estivesse a decorrer, sentir-me-ia tentado a dar aos alunos, como trabalho de casa, a transformação do texto em português europeu de fato e gravata. Mas sem o “taparuel” (adaptação que é uma gracinha que fica no ouvido), não seria a mesma coisa…

Abraço e bom final de domingo. O meu vai encerrar-se com um lindo pato assado no forno solar. ;)

António
Nota: Missão realizada entre 24/8/16 e 28/9/16. Continuo a partilhar experiências, pois, no terreno, o acesso à net era limitado.

01/10/16

Voluntário na Guiné 12: Adeus, Bissau!

O tear da felicidade alimenta-se de fios de "pequenas" coisas...

Depois de cerca de 40 dias em Bissau, concluiu-se a formação intensiva de 100 horas  de língua portuguesa no Instituto Camões (IC). O último dia preencheu-se de sentimentos contraditórios: por um lado, a alegria de ver cumprida a missão com a certificação de 20 jovens; por outro, a tristeza que todas as despedidas trazem no ventre…

Houve festa na entrega dos certificados, com a presença de representantes do IC e do Ministério da Educação da Guiné-Bissau.

Se esse foi o clímax da missão, houve um momento que ficará gravado para sempre na minha memória: conjuntamente com o Dr. Fábio, fui distinguido com a oferta de um pano de pente (Ver Nota Cultural no final do “post”). Senti-me honrado e muito emocionado com o gesto dos meus queridos alunos!

Como diria Sebastião da Gama, quero que todos eles sejam felizes. Que tenham sucesso nos estudos e que possam contribuir para uma Guiné-Bissau melhor.
Uma vez que durante a missão nem sempre tive acesso à internet, nos próximos dias, continuarei a partilhar informações sobre a cultura guineense (gastronomia, música...), emoções e alguns momentos divertidos.

Abraço já europeu, mas ainda com a memória na pele do calor húmido de Bissau, para todos os meus jovens pupilos, apresentados com os nomes com que gostavam de ser tratados: Saraiva, Isnaba, Ednilson, Juninho, Braima Fati 1, Braima Fati 2, David, Lente, Aliu, Erickson, Sócrates, Abdu, Vadinho, Vi, Janice, Vanessa, Mariama, Filipe, Eucunicia e Salvador.

ProfAP

Nota Cultural: O tradicional pano de pente “é um objeto de grande significado para a etnia Papel, intervém em todas as etapas da sua vida e é um objeto sagrado. Quantos mais panos se arrecada em vida mais rico se é”. (In http://www.independenciaslusa.info/arquivo-fotos-panos-de-pente-transformaram-se-em-destino-turistico/)
O pano de pente, de tear artesanal, tem uma grande importância social e cultural na Guiné-Bissau. A tecelagem guineense é uma tradição bem antiga e a versatilidade dos panos de pente não a deixam cair em desuso.
Devido ao seu valor patrimonial no seio dos guineenses os panos de pente são usados em várias ocasiões de grande significado para o país, passando pela política, moda, cerimónias fúnebres, casamentos tradicionais e decoração.
Apesar de ser um produto bastante dispendioso, devido a importação do algodão, está sempre presente nos rituais guineenses.” (http://panodepenteguineense.weebly.com/)