22/10/16

Guiné - gastronomia 1: caldo de mancarra!


No mapa do tesouro da gastronomia da Guiné-Bissau, há três marcos incontornáveis. Sendo a base principal da alimentação no país o arroz, não surpreende que no pódio estejam três caldos: o caldo de mancarra (amendoim), o sigá (caldo de óleo de palma) e ainda o caldo de chabéu (fruto de palmeira).
Um dos trabalhos multicompetências dos meus alunos Kripor (curso intensivo de língua portuguesa, concluído há quase um mês em Bissau) foi procurar alguém (familiar ou amigo) especialista na confeção do caldo de mancarra.
Marcaram um encontro com o(a) cozinheiro(a) escolhido(a), tomaram notas sobre os ingredientes e o modo de preparação, escreveram a receita e, finalmente, trouxeram-na para a aula.
Com base na síntese das recolhas feitas pelos jovens, proponho-vos a "Receita Kripor de caldo de mancarra": muito simples, mas respeitando a tradição. O facto de ter trazido da origem óleo de palma (de produção artesanal, com uma cor alaranjada magnífica e um sabor delicado) e pasta de amendoim (sem qualquer aditivo, comprada na lojinha "Sabores da Tabanca") facilitou-me a tarefa. Numa versão mais europeia, sugiro-vos a substituição do óleo de palma por azeite e a pasta de amendoim por manteiga de amendoim (mesmo com aditivos…).


Ingredientes para 4 pessoas:
.1 frango cortado em pedaços
.2 cebolas médias cortadas às rodelas finas
.sumo de 1 limão
.300 g de tomate bem maduro (pode ser enlatado) triturado
.300 g de pasta de amendoim (ou manteiga de amendoim)
.óleo de palma ou azeite (6 colheres de sopa)
.2 malaguetas cortadas em tiras finas (sem as sementes)
.água e sal
Nota: Retirei os caldos (Knorr e Maggi, a que chamam “gosto” ou “gusto”), uma constante nas receitas recolhidas. Estes caldos são uma ameaça para as tradições gastronómicas e para a saúde dos guineenses.

Preparação:
1. Num tacho antiaderente, deixe a cebola e as malaguetas estufarem no óleo de palma durante 5 minutos em lume médio.
2. Junte o frango, o sumo de limão, uma pitada de sal e deixe apurar em lume brando durante 10 minutos, mexendo de vez quando.
3. Junte a pasta de amendoim (previamente transformada em puré fluido com um pouco de água), o tomate triturado e envolva tudo muito bem.
4. Deixe cozinhar em lume médio-baixo até o frango ficar tenro e incorporar todos os sabores do caldo. Cerca de 30 minutos deverão ser suficientes.
5. Sendo necessário, retifique o sal, desligue o lume e deixe repousar 5 minutos com o tacho tapado.
6. Sirva com arroz branco e delicie-se!
7. A acompanhar, vinho branco fresco ou uma bebida bem guineense: uma infusão de flores de ondjo (uma espécie de hibisco) com hortelã. É só juntar 3 colheres de sopa bem cheias de flores (há nas ervanárias e vi hoje de manhã que também há à venda a peso no Jumbo) a 1 litro de água. Quando começar a ferver, junte três pernadinhas de hortelã. Conte um minuto, desligue o lume e deixe repousar cerca de meia hora. Junte gelo e sirva(-se).


Abraço e bom apetite!

18/10/16

Voluntário na Guiné 22: sabedoria em crioulo!

Espetacular termiteira de bagabaga!

Como em todas as línguas, os muitos provérbios do crioulo guineense (não conhecia nenhum!) são um manancial de ideias sábias tecido na dureza da vida quotidiana.
O primeiro que descobri foi este:
1. Baga-baga ka ta kata iagu, ma i ta masa lama. = A bagabaga não tem água, mas amassa o barro.

É muito usado na educação das crianças, passando-lhes a mensagem de que o importante é “desenrascar-se” com engenho mesmo quando as condições da vida são adversas.
A bagabaga é uma térmite, cujas construções (feitas de substâncias lenhosas e barro e que muitas vezes ultrapassam os dois metros de altura) fazem parte da paisagem. Quando se sai Bissau, é impossível não as ver, “plantadas” entre os cajueiros e as mangueiras. Um destes dias, vou dedicar-lhe um artigo, incluindo uma história que me contaram.

Embora, 70% do seu léxico tenham influência do português, o crioulo guineense (com muito em comum com o crioulo de Cabo Verde) não é uma espécie de "português mal falado" como muitos pensam. Tem regras próprias e raízes nas línguas indígenas. Por exemplo, bagabaga, grafia adaptada ao português, vem do crioulo baga-baga, formado a partir do bambara baga e do mandinga baaba.
Muito interessante também é a sua sonoridade, agradável ao ouvido, resultado sobretudo do jogo entre os sons “i” e “á”. Experimente ler em voz alta os provérbios 15 e 18. Lê-se como se escreve (não há acentos no crioulo).

2. Bardadi i suma malgeta: i ta iardi.
A verdade é como a malagueta: arde.
3. Bariga ka fila ku arus, ki-fadi miju.
Barriga que não se dá bem com arroz, muito menos se dará bem com milho.
4. Bianda sabi ka ta tarda na kabas.
Comida saborosa não demora muito na panela.
5. Bibus na cora, ki-fadi mortus.
Se os vivos choram, que dizer dos mortos.
6. Boka ficadu ka ta ientra moska.
Em boca fechada não entram moscas.
7. Deus sibi ke k' manda iagu di mar salga. 
Deus sabe porque a água do mar é salgada.
8. Dinti mora ku lingu, ma i ta daju i murdil.
Os dentes moram com a língua, mas às vezes mordem-na.
9. Dus galu ka ta kanta na un kapuera.
Dois galos não cantam no mesmo poleiro.
10. E fila suma gatu ku kacur.
Dão-se como o cão e o gato.
11. Falta di mame, bu ta mama dona.
Na falta de mãe, mama-se na avó.
12. Forsa di pis, iagu.
A força do peixe é a água.
13. Garandis kuma kanua sin remu ka ta kanba mar.
Os anciãos dizem que canoa sem remo não atravessa o mar.
14. Gatu fartu ka ta montia.
Gato de barriga cheia não caça.
15. I ka ten sabi ku ka ta kaba.
Não há bem que nunca acabe.
16. I sancu di dus matu.
É macaco de dois matos.
17. Kabra nunka i ka ta misa dianti di lubu.
A cabra nunca mija perto da hiena.
18. Kacur ka ta tene kacur.
O cão não tem cão.
19. Ami i rasa papaia: N ka ta durmi na bariga di algin.
Sou como o mamão: não fico parado na barriga de ninguém.
2o. Garandi i polon, ma mancadu ta durbal. 
O poilão é grande, mas o machado derruba-o.

Para ilustrar o provérbio 20., eis um imponente poilão fotogrado em Farim.

Abrasu e não esqueça de que “pekadur dalgadu i ta dana moransa” (quem tem mau feitio estraga toda a comunidade).

António

17/10/16

Voluntário na Guiné 21: visita aos rápidos do Saltinho!

A azul, a estrada entre Bissau (à esquerda) e os rápidos (seta laranja).

Depois de uma primeira tentativa em que não chegámos ao destino, reprogramámos uma visita a um sítio que toda a gente nos dizia ser imperdível: os rápidos do Saltinho, na região de Bafatá, não muito longe da fronteira com a Guiné Conacri.
No dia estipulado, em plena época das chuvas, lá fizemos o percurso assinalado no mapa. Eu, as minhas colegas de missão (Edite e Rosário), uma amiga da Edite (a Alice, médica) e uma amiga da amiga da Edite (a Alcina, enfermeira).
Os 350 quilómetros da viagem (ida e volta) valeram a pena!

O cenário natural é impressionante. Indiferente ao verde da vegetação e ao azul do céu, aqui e ali pincelado de branco e cinzento, o rio Corubal, depois de uma curva apertada, passa-se dos carretos, lança-se vertiginosamente no declive do terreno, enfurece-se numa ebulição de espuma e remoinhos e, não deixando dúvidas sobre quem ali reina, lança um forte e contínuo rugido intimidador. Depois de passar sob a ponte (do Saltinho), espalha-se pela planície e fica manso como um cordeiro…

   
Pra ter uma ideia e uma magnífica banda sonora...


Depois da visita, na pousada do Saltinho (onde existia um aquartelamento na época colonial), deixaram-nos usar uma mesa para fazermos o nosso almoço-piquenique com vista para o rio. A chuva deu-se por convidada e caiu fortemente, o que levou os enormes caracóis guineenses (um fascínio para mim) a saírem dos esconderijos e a fazerem escalada nos troncos das palmeiras.

O rio visto da pousada.

Na primeira imagem, da esquerda para a direita: Alcina, Edite, Alice e Rosário.

Exotismo gastrópode!
Abraço
António

16/10/16

Voluntário na Guiné: música guineense 1


Um dos trabalhos orais no curso de português foi a seleção de um tema da música guineense em crioulo. Cada aluno devia apresentar o título da canção (e respetiva tradução), o cantor, uma síntese do assunto abordado na letra e as três razões determinantes para a escolha feita. Por fim, era passada a canção.
Irei partilhando aqui as canções que estiverem disponíveis no Youtube. Será uma forma diferente de viajar pela cultura da Guiné-Bissau.
Esta foi a escolha (hip hop/rap) do David.
Título: Prison sentimental 
Cantor: Lesmes
Assunto:  História de uma paixão contrariada pela família da jovem. O que começa com um namoro às escondidas termina num desfecho trágico, com a morte dos dois apaixonados. Uma espécie de Romeu e Julieta dos tempos modernos.
Abraço.
António

15/10/16

Voluntário na Guiné 20: o chichi!

A Rosário a pôr a mesa. Mal sabia ela o que estava para vir...

Era sábado e fomos até Farim, no Norte, na direção da fronteira com o Senegal.
Como os francos CFA (uma espécie de euro partilhado por alguns países africanos) já não abundavam e tinham de ser aplicados prioritariamente para encher o depósito de gasóleo (na Guiné, mais caro do que a gasolina), levámos as vitualhas para um piquenique.
Próximo de Farim, já no regresso, instalámo-nos debaixo de uma mangueira nas imediações de uma tabanca (aldeia).
Tudo correu bem: sem chuva, uma bela salada, conservas, azeitonas (um luxo!). Tudo regado com uma infusão fresca de ondjo (flor seca, da família do hibisco, rica em ferro e vitamina C) e com muuuita animação.
Antes de seguirmos viagem até uma bomba da GALP para um cafezinho (muito bom!), a Rosário teve uma vontade imperiosa de fazer um chichizinho. Depois de conferenciar com a Edite e analisarem os prós e os contras dos sítios possíveis (que, literalmente neste caso, a necessidade aguça o engenho), lá escolheram uma pequena clareira na vegetação, perto da mangueira que nos deu abrigo, junto à estrada.
Enquanto eu vigiava o lado esquerdo da estrada, a Edite controlava o lado direito e ia cantarolando num perfeito crioulo europeu: “Ka passa, ka passa.” (Não passa, não passa.)
Eis senão quando, vejo vir de dentro da floresta, por um pequeno carreiro, um jovem guineense, a pedalar vigorosamente na sua bicicleta. Em que direção? Adivinharam! Na rota da enfermeira Rosário, coitadinha, de calças na mão, desprotegida e prestes a ter um encontro imediato do lado que menos esperava.
Só tive tempo de dizer, alto e bom som, respondendo à lengalenga da Edite, “Ai, passa, passa!”.
Ato contínuo, ouve-se um grito-lamento: “Epá, não me digas que vem aí alguém..” Confirmei-lhe a suspeita com um “Vem do lado do mato!
A poucos metros do espaço central da ação (a tal clareira “escondida”), depois de ter visto não sabemos o quê, o jovem parou a bicicleta e virou a cara para o lado oposto e ficou ali, imóvel, enquanto a infeliz Rosário se (re)compunha.
O jovem, retomou a marcha e, ao passar por nós, deu-nos um sonoro bom-dia.
Já dentro do carro, com a Edite a pôr o pé no acelerador, a Rosário recuperou a fala: “Epá, agora é que me está a dar os calores!

Abraço.

António

14/10/16

Voluntário na Guiné 19: os erros mais difundidos em Bissau...

Mantém-se o desafio aos meus alunos guineenses, no âmbito de um tpc intercontinental, para que assinalem e corrijam o erro que há neste cartaz. Depois, é só enviar a resposta para a Europa!


Com a pronúncia aberta (como no Brasil) da preposição a, a confusão com a contração à é um erro que muitos guineenses cometem.

Aqui sim, à seria a grafia correta...


O excelente caju da Guiné-Bissau dispensava aquele "aditivo" gráfico...

Abraço.
ProfAP

13/10/16

Voluntário na Guiné 18: animais de estimação...

Cena familiar (feliz) na cidade de Cacheu...

Como íamos estudar um artigo intitulado “Os animais de estimação fazem bem à saúde!”, pareceu-me uma boa ideia criar uma estratégia de pré-leitura. Assim, na véspera do estudo do texto, pedi aos alunos que se preparassem para participar oralmente: “Tem ou gostaria de ter animais de estimação? Quais? Porquê?”
No dia seguinte, logo no início da aula, lá foram sendo feitas as intervenções. Num certo momento, um jovem disse que já tinha tido um cão, mas não queria mais animais de estimação. Ingenuamente, quis saber porquê. Veio, nu e cru, o relato. Depois de sido apedrejado num dia, noutro dia, o animal foi mesmo levado e… comido! 
Embora chocado com o relato, tentei encontrar as palavras certas para confortar o jovem e mostrar a minha solidariedade.
Recompus-me (The show must go on…) e as apresentações prosseguiram. 
Dois ou três alunos depois, mais uma partilha. “Eu tinha um gato, mas comeram-mo!” Mais umas palavras de conforto e passámos ao orador seguinte.
Mesmo quase no fim: “Eu tinha um periquito…”. Não me contive: “Não me diga que lhe comeram o periquito!” “Não, não. Morreu.”, respondeu o aluno. Com um suspiro de alívio, saiu-me um “Ah, tava a ver…”.
Nas restantes apresentações, tudo “normal”, incluindo o caso do Braima que tem como animal de estimação um carneiro.
Lembrei-me depois que a minha mãe conta que, no início dos anos 60, os malteses (trabalhadores agrícolas oriundos do Norte), que trabalhavam, em condições miseráveis, no monte onde vivíamos, comiam todos os gatos que apanhavam a jeito…  
Tudo é relativo na vida. A sabedoria popular di-lo: "Em caso de necessidade, casa a freira com o frade."

Abraço.
António