15/10/16

Voluntário na Guiné 20: o chichi!

A Rosário a pôr a mesa. Mal sabia ela o que estava para vir...

Era sábado e fomos até Farim, no Norte, na direção da fronteira com o Senegal.
Como os francos CFA (uma espécie de euro partilhado por alguns países africanos) já não abundavam e tinham de ser aplicados prioritariamente para encher o depósito de gasóleo (na Guiné, mais caro do que a gasolina), levámos as vitualhas para um piquenique.
Próximo de Farim, já no regresso, instalámo-nos debaixo de uma mangueira nas imediações de uma tabanca (aldeia).
Tudo correu bem: sem chuva, uma bela salada, conservas, azeitonas (um luxo!). Tudo regado com uma infusão fresca de ondjo (flor seca, da família do hibisco, rica em ferro e vitamina C) e com muuuita animação.
Antes de seguirmos viagem até uma bomba da GALP para um cafezinho (muito bom!), a Rosário teve uma vontade imperiosa de fazer um chichizinho. Depois de conferenciar com a Edite e analisarem os prós e os contras dos sítios possíveis (que, literalmente neste caso, a necessidade aguça o engenho), lá escolheram uma pequena clareira na vegetação, perto da mangueira que nos deu abrigo, junto à estrada.
Enquanto eu vigiava o lado esquerdo da estrada, a Edite controlava o lado direito e ia cantarolando num perfeito crioulo europeu: “Ka passa, ka passa.” (Não passa, não passa.)
Eis senão quando, vejo vir de dentro da floresta, por um pequeno carreiro, um jovem guineense, a pedalar vigorosamente na sua bicicleta. Em que direção? Adivinharam! Na rota da enfermeira Rosário, coitadinha, de calças na mão, desprotegida e prestes a ter um encontro imediato do lado que menos esperava.
Só tive tempo de dizer, alto e bom som, respondendo à lengalenga da Edite, “Ai, passa, passa!”.
Ato contínuo, ouve-se um grito-lamento: “Epá, não me digas que vem aí alguém..” Confirmei-lhe a suspeita com um “Vem do lado do mato!
A poucos metros do espaço central da ação (a tal clareira “escondida”), depois de ter visto não sabemos o quê, o jovem parou a bicicleta e virou a cara para o lado oposto e ficou ali, imóvel, enquanto a infeliz Rosário se (re)compunha.
O jovem, retomou a marcha e, ao passar por nós, deu-nos um sonoro bom-dia.
Já dentro do carro, com a Edite a pôr o pé no acelerador, a Rosário recuperou a fala: “Epá, agora é que me está a dar os calores!

Abraço.

António

14/10/16

Voluntário na Guiné 19: os erros mais difundidos em Bissau...

Mantém-se o desafio aos meus alunos guineenses, no âmbito de um tpc intercontinental, para que assinalem e corrijam o erro que há neste cartaz. Depois, é só enviar a resposta para a Europa!


Com a pronúncia aberta (como no Brasil) da preposição a, a confusão com a contração à é um erro que muitos guineenses cometem.

Aqui sim, à seria a grafia correta...


O excelente caju da Guiné-Bissau dispensava aquele "aditivo" gráfico...

Abraço.
ProfAP

13/10/16

Voluntário na Guiné 18: animais de estimação...

Cena familiar (feliz) na cidade de Cacheu...

Como íamos estudar um artigo intitulado “Os animais de estimação fazem bem à saúde!”, pareceu-me uma boa ideia criar uma estratégia de pré-leitura. Assim, na véspera do estudo do texto, pedi aos alunos que se preparassem para participar oralmente: “Tem ou gostaria de ter animais de estimação? Quais? Porquê?”
No dia seguinte, logo no início da aula, lá foram sendo feitas as intervenções. Num certo momento, um jovem disse que já tinha tido um cão, mas não queria mais animais de estimação. Ingenuamente, quis saber porquê. Veio, nu e cru, o relato. Depois de sido apedrejado num dia, noutro dia, o animal foi mesmo levado e… comido! 
Embora chocado com o relato, tentei encontrar as palavras certas para confortar o jovem e mostrar a minha solidariedade.
Recompus-me (The show must go on…) e as apresentações prosseguiram. 
Dois ou três alunos depois, mais uma partilha. “Eu tinha um gato, mas comeram-mo!” Mais umas palavras de conforto e passámos ao orador seguinte.
Mesmo quase no fim: “Eu tinha um periquito…”. Não me contive: “Não me diga que lhe comeram o periquito!” “Não, não. Morreu.”, respondeu o aluno. Com um suspiro de alívio, saiu-me um “Ah, tava a ver…”.
Nas restantes apresentações, tudo “normal”, incluindo o caso do Braima que tem como animal de estimação um carneiro.
Lembrei-me depois que a minha mãe conta que, no início dos anos 60, os malteses (trabalhadores agrícolas oriundos do Norte), que trabalhavam, em condições miseráveis, no monte onde vivíamos, comiam todos os gatos que apanhavam a jeito…  
Tudo é relativo na vida. A sabedoria popular di-lo: "Em caso de necessidade, casa a freira com o frade."

Abraço.
António

12/10/16

Voluntário na Guiné 17: o assalto!

Mercado do Bandim.

12/9/16 - Com as minhas colegas voluntárias Edite (médica) e Rosário (enfermeira), embrenhei-me no Mercado do Bandim (que se estende por quilómetros ao longo da Avenida dos Combatentes da Liberdade da Pátria, prolongando-se pelas ruas e ruelas circundantes). Num ambiente animado, fomos comprando os ingredientes para um caldo de peixe, receita típica guineense (com um toque lusitano), que iria confecionar para um grupo de amigos.
E tudo corria bem até ao momento em que a Edite se baixou para escolher umas bananas que queria comprar. Sem nos apercebermos, um jovem deitou-lhe a mão ao fio de ouro e puxou-o até se partir, fugindo com ele.
A Edite gritou “Ai o meu fio, levou-me o meu fio!” E eu fazia gestos a explicar o que tinha acontecido, uma vez que grande parte da população só fala crioulo. Outros jovens puseram-se no encalço do meliante, entretanto desaparecido numa rua estreita e labiríntica, enquanto as vendedoras nos garantiam “Vão apanhar, vão apanhar!”.
Fiquei na dúvida se o iam apanhar ou dar-lhe uma surra, mas nunca uma frase incorretamente construída me soou tão bem!
Enquanto durava a perseguição, ia abraçando a Edite para a confortar e explicava a quem chegava, numa espécie de bilinguismo de palavras e gestos, o que se tinha passado.
Poucos minutos depois, apareceu uma parte do grupo perseguidor, dando, com entusiasmo, a boa-nova: “Encontraram, encontraram!” Logo depois, chegou o portador do fio, devolvendo-o à Elisa. Aí, uma vendedora gritou algo que não entendemos inicialmente, mas depois percebemos que tínhamos de dar dinheiro a quem tinha apanhado o ladrão. A Elisa tinha apenas umas moedas, mas a tal vendedora inflamadora das massas começou a gritar que não chegava e tinha de dar mais, no que foi secundada por outras vendedoras. No meio de uma algazarra intimidadora, rapidamente fomos cercados por todos os lados com a exigência de aumentarmos a recompensa.
Então eu, que tinha estado a acumular nervos atrás de nervos, passei-me dos carretos e resolvi agir. Abri os braços, levantei-os bem alto e gritei o mais alto que pude:
Esta senhora…” Aí, todos se calaram e olharam para mim, que era o que eu queria.
Recomecei a gritar: “Esta senhora é médica. Está a trabalhar no Hospital de Bissau e é voluntária. Não ganha nada. Não recebe dinheiro. Ok?
Aproveitando o silêncio que se instalou, acrescentei: “Eu sou professor de Português e estou a dar aulas a jovens guineenses no Centro Cultural Português. Não ganho nada. Não recebo dinheiro. Ok? Estamos aqui para ajudar e não para ganhar dinheiro. Ok?
O facto de eu ser professor não impressionou ninguém, mas o exercício da medicina sim, pois começaram logo a perguntar às minhas colegas: “Estar no hospital? Estar no hospital?”.
A Rosário, que já tinha tirado carteira da mão da Edite e a tinha guardado, dizia “Vamos embora, vamos embora!”. Várias pessoas seguiam-nos, agora com ar de admiração, e eu ia continuando a explicar que éramos voluntários e que não recebíamos.
Finalmente, saímos do mercado e adiámos a conclusão das compras para o tal caldo de peixe. Caldinho, já tínhamos que chegasse para uma tarde…
Uma coisa é inegável: em Portugal, nunca o fio teria sido recuperado!
P.s.: Quanto à vendedora de bananas, nunca mais a vimos. Perdeu o negócio com o desenrolar dos acontecimentos.

Abraço.

António

09/10/16

Voluntário na Guiné 16: histórias de bodes e de cabras!

Para que será o pau pendurado ao pescoço da cabra?

Trago-vos três apontamentos interessantes.
1. Em Bissau
Uma das primeiras histórias que me contaram foi a de um bode branco bissauense. O famoso ruminante dá nome à rotunda junto ao sítio onde reside: “rotunda do bode branco”.
Passei por lá e vi o animal ao vivo: um verdadeiro ancião de barbas brancas e ar filosófico. Disseram-me que os donos das cabras das redondezas as levam ao bode branco para um “tête-à-tête” de reprodução “garantida”…
2. Pelo país
As cabras encontram-se em todo o país e são transportadas de todas as maneiras: de bicicleta, mota ou no topo das candongas (carrinhas que transportam passageiros entre localidades). E lá vão elas amarradas, às vezes precariamente, com ar resignado e muito pouco filosófico...

3. Nas tabancas (aldeias)
Sempre que saía de Bissau via as cabras com um pau pendurado ao pescoço, na horizontal. Pensei que fosse uma forma de limitar os movimentos dos animais para não se afastarem. Para confirmar (ou não) a hipótese, perguntei a um amigo guineense. A resposta foi surpreendente…


A vara, estrategicamente colocada, impede as cabras de entrarem nas hortas. Basta colocar as vedações com espaços entre cada pau com uma largura inferior ao comprimento da vara colocada ao pescoço dos animais. Matemática simples e muito engenhosa!

Abraço.
António

08/10/16

Voluntário na Guiné 15: o corpo e a alma de Bissau!


Uma das fotos que mais gostei de tirar!

À primeira impressão, Bissau é uma cidade em autogestão (como todo o país) e a céu aberto…
O lixo e os esgotos marcam a paisagem. Não há contentores nem caixotes. O gesto natural é deitar para o chão. Existe recolha de detritos, mas é pouco eficaz.

E depois há as pessoas. Com pequenos negócios e a arte que o engenho aguça, são heróis numa odisseia de sobrevivência todos os dias. 

De sorriso fácil e um otimismo desconcertante, falam da esperança em dias melhores. Embora cientes da situação política complicada, da corrupção e da má gestão, têm um amor profundo ao seu país e orgulho em serem guineenses.
Após cinco semanas, na véspera de partir, dediquei a tarde à zona onde a atividade humana é constante e intensa: o mercado do Bandim. São quilómetros de lojas, bancas ou apenas panos no chão com pepinos (é a época deles), pimenta, feijão, frutos (poucos nesta altura do ano) ou mancarra (amendoim). Aqui e ali, em pequenos fogareiros a carvão, espigas de milho a assar tentam quem passa. Comprei mancarra, feijão, umas tiras de coco (para lanche ambulante) e pepinos (muito tenros e de excelente sabor, ainda duram cá em casa).
Depois de duas horas de deambulação labiríntica, alagado em transpiração e sob a ameaça de uma gigantesca trovoada, iniciei o caminho de regresso para o alojamento. 
Olhando à esquerda e à direita e para o céu (sempre diferente na luz, nas cores e nas formas, mas sempre magnífico), fui descendo a avenida e registando na alma, como um pintor de emoções, as últimas impressões...
 Um abutre vigia o negrume das nuvens...

 Ao fim da tarde, o céu pinta-se de ouro...

 Um urso gigantesco invade o céu...

Como uma pincelada, uma ave projeta-se no écran de nuvens...

Com o dia a acabar, o sol incendeia as nuvens...

Já com a saudade à espreita, senti-me um bissanense de corpo e alma!

Abraço especial para todos que tive o prazer de conhecer nesta aventura.
António

05/10/16

Voluntário na Guiné-Bissau 14: A distração-mor...

Embaixada de Portugal e o Instituto Camões.


Sou irremediavelmente distraído, o que pode ser problemático…
Último dia do curso em Bissau. O Comandante Madureira apareceu com o Lona (Tenente do exército guineense) na sala, mesmo quando a aula estava a terminar. Vinha à procura da minha colega Edite, que estava fora da cidade, e ofereceu-me boleia para o Bairro da Cooperação Portuguesa (onde eu estava alojado). Arrumei os papéis, peguei no saco de peixe fumado que uma aluna (a Mariama) me ofereceu e encaminhei-me para a saída, parando aqui e ali para corresponder aos cumprimentos que ia recebendo. Chegado à porta, encaminhei-me, quase sem olhar, para o jipe que ali estava estacionado. Pareceu-me que a pintura estava mais escura e achei o fecho da porta mais estreito. Mas nada me deteve. Abri a porta e entrei para o banco de trás. No interior, estavam dois jovens militares que nunca tinha visto. O primeiro sorriu e ajudou-me a pôr os papéis no banco. O outro parecia ter um ponto de interrogação em cada olho. “Olá, tudo bem?”, disse eu. “Onde está o Comandante Madureira?”, acrescentei. Ficaram a olhar para mim sem responder. “Mas este não é o jipe do Comandante?”, perguntei, desconcertado. Tinham acabado de acenar negativamente, quando ouvi o Lona gritar do lado de fora: “Professor, o nosso jipe está aqui à frente!”
Balbuciei um pedido de desculpas, peguei nos meus papéis e no saco do peixe e saí. Antes de fechar a porta, vi o que o banco ficara molhado, o que me deixou intrigado…
Quando cheguei ao jipe certo, o Comandante perguntou-me se eu sabia de quem era o jipe em que tinha entrado momentos antes. Quando respondi que não, disse-me, com um sorriso, que era do Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas da Guiné-Bissau. Fiquei sem fala!
Depois de chegar ao apartamento, percebi porque é que o banco do jipe VIP tinha ficado molhado. O saco do peixe estava húmido…

Abraço.
António