22/12/17

Uma prenda de Natal!


Muitos amigos e colegas me têm contactado pelo meu silêncio aqui no blogue, onde não escrevia desde o final de setembro. Estou bem. ;) O silêncio deve-se ao facto de,  desde o regresso em outubro, uma dupla missão em Bissau, estar a preparar, em regime intensivo, materiais para uma oficina de formação para professores, novamente em Bissau, no início de janeiro, no âmbito da reforma educativa do ensino básico na Guiné-Bissau, iniciativa do Banco Mundial, Fundação C. Gulbenkian e Universidade do Minho. 
Logo que recupere do cartão as fotos tiradas em setembro, partilharei convosco novos "posts" com pequenas coisas que fui observando e registando em Bissau.
Como o Natal está à porta, um grande abraço para os amigos e colegas (sobretudo da Gulbenkian, Guiné-Bissau, São Tomé, da minha associação de voluntariado "Ser Mais Valia", da Escola Ferreira Dias, onde trabalhei durante os últimos 26 anos da minha carreira, e do Colégio Vasco da Gama, onde estive, com muito gosto, no início da semana).
Quanto à prenda para todos, é resultado do meu passatempo da escrita: um pequeno conto de Natal, escrito há algum tempo. A imagem ilustrativa é um recanto mágico do sul de São Tomé e Príncipe (coqueiros, bananeiras e, em primeiro plano, uma trepadeira de baunilha). Seja qual for a vossa religião (ou nenhuma), o meu desejo é que passem bons momentos com todos os que amam e que 2018 vos traga sonhos, emoções e vivências felizes!

O Natal de Eva…

               Aquele parecia ser um dia como todos os outros: soalheiro, ameno, com a cortina das nuvens toda corrida, a revelar, como sempre, um céu muito azul e límpido.
               As aves-do-paraíso-rabilongas (espécie muito vistosa), com os seus voos rasantes, aproveitavam o vaivém do eco para prolongarem os seus gritos estridentes por todo o vale.
               As toutinegras e os rouxinóis, instalados nos pontos mais altos do denso canavial, rivalizavam na harmonia fresca dos seus cantos.
               A espaços, ouvia-se o rumorejar do riacho que corria, feliz, entre as árvores. Nestas, destacavam-se, orgulhosos, os frutos coloridos, verdadeiro milagre de uma vontade invisível: laranjas reluzentes e sedutoras; marmelos amarelos e olorosos, projetados como sóis recortados no ecrã verde seco das folhas; romãs grená, coroadas como rainhas; cachos ciosos das suas uvas maduras a espreitar por entre a vegetação, temendo a gula dos gaios, melros, pardais e mesmo das formigas.
               - Adão! – gritou Eva. – Vem ver… Depressa!
               Junto a uma árvore de grande porte, esplendorosa na sua nudez e muito confiante, pois a vergonha ainda não entrara no dicionário da humanidade, aguardou, impaciente, o grande (e único…) amor da sua vida.
               Ofegante pela pressa com que ocorrera ao chamamento, Adão chegou mesmo a tempo de ver, intrigado, o sorriso enigmático que a pitão-do-paraíso exibia, instalada no pescoço de Eva, o seu local de eleição. Mais do que um animal de estimação, o réptil era uma verdadeira confidente com quem partilhava dúvidas, emoções, pensamentos e opiniões.
               Do alto do seu metro e noventa, atlético, cabelo louro cortado muito rente (com a lâmina de cana que engenhosamente inventara), Adão apreciava, absorto e embevecido, os longos cabelos negros e sedosos da companheira…
               - Adãozinhooo, amor, já reparaste naqueles frutos vermelhos ali ao meio do Jardim? Serão bons?
               Adão e a pitão estremeceram ambos, embora por razões diferentes.
               -Eva, Evinha, sabes bem que o Criador nos quer afastados daqueles frutos…
               - Mas se provarmos só um, unzinho mesmo, tem algum mal?
               Cinco ou seis dias de insistência (cálculo falível, pois ali não havia tempo e era sempre dia…), pressão e chantagem emocional deram os seus frutos. Assim que Adão cedeu, Eva apressou-se a colher uma rainha-do-paraíso (antepassado da maçã reineta atual, que perdeu, entretanto, a cor avermelhada que tinha na origem).
               Deus chegou no preciso momento em que Eva dava pancadas vigorosas nas costas de Adão, tentando, em vão, que o pedaço de fruto preso na garganta se soltasse.
                O que a seguir se passou não foi agradável de se ver: extensa e violenta reprimenda de Deus e expulsão, sem remissão, do Jardim do Éden.
               Eva, mulher de iniciativa, com uma desfaçatez que espantaria até a sua pitão-do-paraíso, caso não tivesse sido extinta momentos antes como castigo por ter instigado Eva a colher o fruto da árvore proibida, perguntou a Deus:
               - Mas, Senhor, é assim? Expulsas-nos do Jardim e já está? Saímos com uma mão à frente e outra atrás, sem nada?
               - E que pretendes, mulher despudorada?
               - Um miminho, algo que nos alegre o espírito.
               - Queres um vislumbre do passado ou do futuro?
               - Do futuro, claro!
              Num ápice, Adão e Eva viram-se, pela primeira vez na vida, vestidos. A roupa, confortável e distinta, assentava-lhes como uma luva, o que, dada a perfeição dos seus portes físicos, não era de surpreender.
               Cercados de gente por todos os lados, que ia e vinha, frenética, entrava e saía das lojas, deslumbravam-se com as luzes multicolores e deleitavam-se com a suave música de fundo que se ouvia em todo o espaço. Decidida, Eva empunhou o cartão de crédito dado por Deus e arrastou Adão, de loja em loja, carregando-o de sacos. Socorrendo-se do vigor da sua juventude e da paciência que a paixão sempre dá, ele seguia-a sem protestar e sorria perante a sua fúria consumista.
               Quando se aproximava o fim do dia, Deus estalou os dedos e, como que por magia, os sacos das compras desapareceram e os pombinhos viram-se diante de Deus exatamente como vieram ao mundo (excetuando as parras…).
               - Mas… - balbuciou Eva, muito desapontada.
               - Mulher, concedi-te apenas um vislumbre.
               - Mas onde estivemos? Que era aquilo tudo? A música, as luzes, as lojas…
               - Estiveste num Centro Comercial e aquilo era o Natal.
               - O Natal?
               - Não podes compreender, Eva. Irei inventar o Natal e os teus descendentes, irão, daqui a muitos anos, reinventá-lo e transformá-lo naquele labirinto cheio de vazio que acabaste de percorrer…
               - Aquilo vai mesmo existir? – Perguntou Eva, vivamente interessada.
               - Infelizmente, assim será… - Respondeu Deus, desalentado.
               Enquanto Adão pensava no fascínio que sentira diante da prateleira dos microportáteis semiorgânicos (uma novidade de meados do século XXI), Eva sentia crescer em si o gene que iria evoluir, aperfeiçoar-se, até chegar àquele Natal que tanto a impressionara. Aproveitando um momento de distração de Deus, virou-se para Adão e disse-lhe ao ouvido:
               - Acho que Ele acabou de nos mostrar o verdadeiro Jardim das Delícias!


António Pereira

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