Muitos amigos e colegas me têm contactado pelo meu silêncio aqui no blogue, onde não escrevia desde o final de setembro. Estou bem. ;) O silêncio deve-se ao facto de, desde o regresso em outubro, uma dupla missão em Bissau, estar a preparar, em regime intensivo, materiais para uma oficina de formação para professores, novamente em Bissau, no início de janeiro, no âmbito da reforma educativa do ensino básico na Guiné-Bissau, iniciativa do Banco Mundial, Fundação C. Gulbenkian e Universidade do Minho.
Logo que recupere do cartão as fotos tiradas em setembro, partilharei convosco novos "posts" com pequenas coisas que fui observando e registando em Bissau.
Como o Natal está à porta, um grande abraço para os amigos e colegas (sobretudo da Gulbenkian, Guiné-Bissau, São Tomé, da minha associação de voluntariado "Ser Mais Valia", da Escola Ferreira Dias, onde trabalhei durante os últimos 26 anos da minha carreira, e do Colégio Vasco da Gama, onde estive, com muito gosto, no início da semana).
Quanto à prenda para todos, é resultado do meu passatempo da escrita: um pequeno conto de Natal, escrito há algum tempo. A imagem ilustrativa é um recanto mágico do sul de São Tomé e Príncipe (coqueiros, bananeiras e, em primeiro plano, uma trepadeira de baunilha). Seja qual for a vossa religião (ou nenhuma), o meu desejo é que passem bons momentos com todos os que amam e que 2018 vos traga sonhos, emoções e vivências felizes!
O Natal de Eva…
Aquele parecia ser um dia
como todos os outros: soalheiro, ameno, com a cortina das nuvens toda corrida, a
revelar, como sempre, um céu muito azul e límpido.
As aves-do-paraíso-rabilongas
(espécie muito vistosa), com os seus voos rasantes, aproveitavam o vaivém do
eco para prolongarem os seus gritos estridentes por todo o vale.
As toutinegras e os rouxinóis,
instalados nos pontos mais altos do denso canavial, rivalizavam na harmonia
fresca dos seus cantos.
A espaços, ouvia-se o
rumorejar do riacho que corria, feliz, entre as árvores. Nestas, destacavam-se,
orgulhosos, os frutos coloridos, verdadeiro milagre de uma vontade invisível:
laranjas reluzentes e sedutoras; marmelos amarelos e olorosos, projetados como
sóis recortados no ecrã verde seco das folhas; romãs grená, coroadas como
rainhas; cachos ciosos das suas uvas maduras a espreitar por entre a vegetação,
temendo a gula dos gaios, melros, pardais e mesmo das formigas.
- Adão! – gritou Eva. – Vem
ver… Depressa!
Junto a uma árvore de grande
porte, esplendorosa na sua nudez e muito confiante, pois a vergonha ainda não
entrara no dicionário da humanidade, aguardou, impaciente, o grande (e único…)
amor da sua vida.
Ofegante pela pressa com que
ocorrera ao chamamento, Adão chegou mesmo a tempo de ver, intrigado, o sorriso
enigmático que a pitão-do-paraíso exibia, instalada no pescoço de Eva, o seu
local de eleição. Mais do que um animal de estimação, o réptil era uma
verdadeira confidente com quem partilhava dúvidas, emoções, pensamentos e
opiniões.
Do alto do seu metro e
noventa, atlético, cabelo louro cortado muito rente (com a lâmina de cana que
engenhosamente inventara), Adão apreciava, absorto e embevecido, os longos
cabelos negros e sedosos da companheira…
- Adãozinhooo, amor, já reparaste naqueles frutos vermelhos ali ao meio
do Jardim? Serão bons?
Adão e a pitão estremeceram
ambos, embora por razões diferentes.
-Eva, Evinha, sabes bem que o Criador nos quer afastados daqueles
frutos…
- Mas se provarmos só um, unzinho mesmo, tem algum mal?
Cinco ou seis dias de
insistência (cálculo falível, pois ali não havia tempo e era sempre dia…),
pressão e chantagem emocional deram os seus frutos. Assim que Adão cedeu, Eva
apressou-se a colher uma rainha-do-paraíso (antepassado da maçã reineta atual,
que perdeu, entretanto, a cor avermelhada que tinha na origem).
Deus chegou no preciso
momento em que Eva dava pancadas vigorosas nas costas de Adão, tentando, em
vão, que o pedaço de fruto preso na garganta se soltasse.
O que a seguir se passou não
foi agradável de se ver: extensa e violenta reprimenda de Deus e expulsão, sem remissão,
do Jardim do Éden.
Eva, mulher de iniciativa,
com uma desfaçatez que espantaria até a sua pitão-do-paraíso, caso não tivesse sido
extinta momentos antes como castigo por ter instigado Eva a colher o fruto da
árvore proibida, perguntou a Deus:
- Mas, Senhor, é assim? Expulsas-nos do Jardim e já está? Saímos com uma
mão à frente e outra atrás, sem nada?
- E que pretendes, mulher despudorada?
- Um miminho, algo que nos alegre o espírito.
- Queres um vislumbre do passado ou do futuro?
- Do futuro, claro!
Num ápice, Adão e Eva viram-se, pela
primeira vez na vida, vestidos. A roupa, confortável e distinta, assentava-lhes
como uma luva, o que, dada a perfeição dos seus portes físicos, não era de
surpreender.
Cercados de gente por todos
os lados, que ia e vinha, frenética, entrava e saía das lojas, deslumbravam-se
com as luzes multicolores e deleitavam-se com a suave música de fundo que se
ouvia em todo o espaço. Decidida, Eva empunhou o cartão de crédito dado por
Deus e arrastou Adão, de loja em loja, carregando-o de sacos. Socorrendo-se do
vigor da sua juventude e da paciência que a paixão sempre dá, ele seguia-a sem
protestar e sorria perante a sua fúria consumista.
Quando se aproximava o fim do
dia, Deus estalou os dedos e, como que por magia, os sacos das compras
desapareceram e os pombinhos viram-se diante de Deus exatamente como vieram ao
mundo (excetuando as parras…).
- Mas… - balbuciou Eva, muito desapontada.
- Mulher, concedi-te apenas um vislumbre.
- Mas onde estivemos? Que era aquilo tudo? A música, as luzes, as lojas…
- Estiveste num Centro Comercial e aquilo era o Natal.
- O Natal?
- Não podes compreender, Eva. Irei inventar o Natal e os teus
descendentes, irão, daqui a muitos anos, reinventá-lo e transformá-lo naquele
labirinto cheio de vazio que acabaste de percorrer…
- Aquilo vai mesmo existir? – Perguntou Eva, vivamente interessada.
- Infelizmente, assim será… - Respondeu Deus, desalentado.
Enquanto Adão pensava no
fascínio que sentira diante da prateleira dos microportáteis semiorgânicos (uma
novidade de meados do século XXI), Eva sentia crescer em si o gene que iria
evoluir, aperfeiçoar-se, até chegar àquele Natal que tanto a impressionara.
Aproveitando um momento de distração de Deus, virou-se para Adão e disse-lhe ao
ouvido:
- Acho que Ele acabou de nos mostrar o
verdadeiro Jardim das Delícias!
António
Pereira