Eu, qual franciscano da língua portuguesa, entre os dois
colegas professores de Português, na tal parada que serviu de inspiração para
escrever o haiku.
A realização do curso tem despertado vivo
interesse. De vez que em quando vêm pessoas, sobretudo jovens, visitar-me à
sala, pedindo sugestões de atividades e materiais para poderem aperfeiçoar os
seus conhecimentos de língua portuguesa. Há uma semana, recebi a visita de um
major guineense que é professor de Português no exército da Guiné. Considerando
as condições que ele e outro professor trabalham (sem fotocópias e com apenas
quadro, giz e um manual desatualizado), queria saber se eu podia dar sugestões
de caráter prático para rentabilizar o trabalho e gerar aprendizagens
duradouras. Com os poucos recursos que tinha tentei dar-lhe algum conforto e
solidariedade, prometendo organizar algumas ideias simples numa filosofia “se
não tens cão, caça com gato, com rato ou até com as pulgas do rato”.
Passados uns dias, novo pedido, agora do
comandante da cooperação militar portuguesa e do tenente guineense que
supervisiona o curso: seria possível disponibilizar uma hora do meu tempo para
falar sobre língua portuguesa aos 100 militares que frequentam o curso? Uma
espécie de motivação para professores e alunos. Embora não fizesse na altura ideia do
que poderia dizer a tão incomum plateia, pus o meu melhor sorriso e disse que o
faria com todo o gosto.
E lá chegou o dia da palestra em Cumeré (para
Norte, a cerca de duas horas de Bissau).
Fomos para um refeitório da época colonial
com mesas de cimento e sem quadro. Das fotocópias previstas só uma foi tirada
em tempo útil. 15h30, um calor e humidade extremas. Achei que ia ser um fracasso.
A transpirar até nos sítios mais inconvenientes (!), percebi que não havia
recuo. E lá me atirei à palestra. Aqueles duzentos olhos a branquejar num mar
de negro, olhavam pra mim, mas não reagiam às graças que eu ia introduzindo
aqui e ali.
Nas sugestões para uma expressão oral
eficiente, dei-lhes como modelo a seguir o presidente Obama. Até o imitei nos
gestos, no olhar e na postura. Só faltou pintar-me de negro. Reação? Não houve.
Quando cheguei às sugestões para a escrita,
questionei-me interiormente se deveria fazer o que tinha previsto:
incentivá-los a escrever pequenas coisas num caderno: ideias, reflexões e…
poemas.
Vencendo as reticências, falei da filosofia
subjacente aos poemas japoneses (haiku) e do modo de construção. Tudo falado,
uma vez que não havia quadro… Li dois
que se adaptavam à paisagem e clima guineenses.
Apontei para a parada (todos seguiram o meu
gesto com a cabeça) e disse que tinha ali alinhavado um haiku dedicado a todos
eles:
A
parada ao sol
Contempla o azul do céu.
A
chuva cairá!
Para concluir a incursão pela poesia, apontei
para uma pedra escura que tinha em cima da minha mesa e citei de forma livre
Sebastião da Gama, dizendo o poeta é aquele que afasta a pedra áspera e escura
(afastei a pedra) e mostra a flor que há por detrás. E apareceu a florinha
amarela que tinha colhido momentos antes do início da sessão.
Encharcado em transpiração e com uma cascata
de gotas de suor a caírem-me da testa para os olhos, olhei para eles à procura
de sinais de aprovação para aquela encenação. Nada!
Pensei para comigo: "Vou mas é encerrar
esta m... que já vi que isto já deu o que tinha a dar!"
Assim fiz. Como levava o meu pequeno
computador e um aluno do curso em Bissau me tinha emprestado umas colunas, pus
o "Se eu voltasse atrás" (Pólo Norte), tendo antes dado sugestões
sobre como poderiam desenvolver as competências de compreensão oral com canções
portuguesas.
Como a acústica do edifício era má, pedi ao
militar que estava à minha frente para pôr as mãos no ar a servir de suporte ao
computador. Pus uma coluna em cada mão e levantei os braços em pose de Cristo
crucificado (era como me sentia...).
Pouco depois de a música estar a tocar,
comecei a mexer os braços para trás e diante e a simular uns passinhos de dança
ao ritmo da canção. Ato contínuo, levantaram os braços a imitar-me e pouco
depois deram-me... uma salva de palmas! Fiquei de boca aberta, literalmente de
queixo caído.
Aproveitando a maré, passei também o Boss Ac
(hip hop) com "Estou vivo e vivo".
Chamei um dos profs de Português para junto
de mim. Pus-lhe uma coluna na mão, abracei-o e dançámos os dois. Foi a desbunda
total: palmas, dança, fotografias, gargalhadas sonoras. Uma festa!
No final, um jovem pediu para falar. Quis, em
nome de todos os colegas, agradecer a minha ida ao quartel e a palestra que,
segundo ele, irá ser muito útil a todos. Acrescentou que gostava de escrever
umas coisinhas, mas sempre tinha tido dúvidas se era algo que devesse fazer.
Com a minha intervenção, não tinha mais dúvidas e iria passar a escrever. Mais
palmas e o coração a derreter-se-me numa fraqueza emotiva tão forte, que tive
de fazer um esforço e peras para conter uma lagrimita que teimava em querer
sair. Agradeci dizendo que as palavras acabadas de proferir eram a melhor
recompensa para o meu trabalho. Uma medalha valiosa! Tinha entrado civil e ia
sair dali um general. Riram-se muito.
Logo de seguida, uma jovem militar pediu para
ler um poema (não sei se escrito na sessão). Botou um vozeirão e leu um
manifesto revolucionário (amanhã, dia 24, é a comemoração da data da
independência, proclamada pelo PAIGC unilateralmente em 1973).
Depois de assistir aos treinos (a marcharem e
a cantarem uma canção) para o desfile em que vão participar nas comemorações,
lá vim aos solavancos nos buracos da estrada de regresso a Bissau.
Missão
cumprida!
Abrasu.
António
Querido António, adorei o teu texto. És corajoso. Se fosse eu, tinha deixado cair a lágrima. Estás de parabéns, General! Beijinhos
ResponderEliminarQuerida Margarida, coragem mesmo é aquilo que a maioria dos guineenses tem de ter para sobreviver. E mesmo assim adoram o seu país. Grande povo! Bejus, como se diz em crioulo.
EliminarBom Dia, António!
ResponderEliminarQue Prazer ler os teus relatos de Viagens!
Vou usar este teu texto para motivar os alunos de 10º ano para a leitura da História trágico- marítima.
Bom Trabalho!
Abraços.
Isabel
Olá!
EliminarObrigado. ;)
Abrasu