Acabada de fazer!
“O melhor doce português de todos é uma
compota feita só com fruta. Não leva um só grama de açúcar. (…)
É a uvada. Comê-la é voltar à meninice, ao
prazer de enfiar um dedo desobediente numa tigela de marmelada recém-cozida e
deixada ao sol a secar e trazer um pedacinho pegajoso para a boca. Sabe a antes
de Afonso Henriques, a prazer antigo que o tempo deveria ter levado mas, por
sorte, deixou.”
(Miguel Esteves Cardoso).
Parece que a uvada já era feita na Idade Média. Sem açúcar nem canela, disponíveis apenas a partir do século XVI a preços elevadíssimos.
A receita que vos proponho, resultado de adaptações
de algumas receitas antigas que fui consultando, é digna de ser degustada uma,
outra e outra vez!
Ingredientes:
.2 litros de sumo (suco) de uvas
(preferencialmente pretas)
.6 maçãs pequenas doces e perfumadas picadinhas sem pele nem sementes (usei bravo-de-esmolfe)
.3 paus de canela (opcional, mas ajudar a
conservar)
.6 colheres de açúcar mascavado (dispensável se as
uvas forem muito doces).
Preparação:
1. Num tacho antiaderente, deixe ferver o sumo em lume (fogo) baixo até reduzir para metade (cerca de uma hora)
2. Junte as maçãs, a canela e o açúcar e deixe
apurar durante mais uma hora. Se necessário, junte água.
3. Coloque ainda quente em recipientes de vidro esterilizados.
4. Deixe arrefecer e tape os recipientes.
5. Guarde num sítio escuro e seco ou no frigorífico (geladeira), aumentando assim o prazo de validade.
Bom apetite!
ChefAntónio
Texto integral da excelente crónica de Miguel
Esteves de Cardoso, publicada no jornal “Público”, em 2012:
O melhor doce português de todos é uma compota feita só com fruta.
Não leva um só grama de açúcar. É verdade que está quase 20 horas ao lume e que
tem um ingrediente secreto (uma fruta dificíl de encontrar), pelo que não
apetecerá fazer em casa.
É a uvada. Comê-la é voltar à meninice, ao prazer de enfiar um dedo
desobediente numa tigela de marmelada recém-cozida e deixada ao sol a secar e
trazer um pedacinho pegajoso para a boca. Sabe a antes de Afonso Henriques, a
prazer antigo que o tempo deveria ter levado mas, por sorte, deixou.
A uvada que conheço é feita pelos Doces d"Arada, na Quinta
Margem d"Arada, em Olhalvo, perto de Alenquer. Têm um bom site mas não consegui falar com eles
através dos números que lá constam.
Quem me aconselhou a uvada foi o gastrónomo José Rocha Lopes, dono
da Garrafeira São Pedro em Torres Vedras (tel: 261 322 916) que conhece a
senhora inspiradíssima que faz a uvada. É na garrafeira dele que se vende cada
tigela a 5,40 euros. Não há maneira mais mágica de gastar uma nota de cinco
euros e duas moedas de vinte cêntimos, garanto-vos.
A novidade da uvada é a antiguidade dela. É feita apenas com mosto
de uvas. Ferve-se em fogo lento durante horas e horas até perder a água. Fica
então o "arrobe" ao qual se acrescenta o tal ingrediente secreto. Há
quem faça com maçã bravo de esmolfe mas não é esse o ingrediente secreto da
Dona Celeste, esclareço já.
Só ela é que sabe fazer esta uvada e é escusado tentar fazê-la em
casa. No site, espreite a cozinha
moderníssima onde é feita e ficará logo desanimado. Felizmente, não se trata de
uma senhora idosa a trabalhar numa pequena casa no coração de Trás-os-Montes
que só faz uma vez por ano, por altura das vindimas, para os amigos.
Na uvada da Dona Celeste existe uma magnífica aliança de uma
receita antiquíssima, eximiamente executada sem qualquer concessão, com uma
pequena unidade de produção apoiada por uma conhecida companhia de vinhos.
Mosto, peros, lenha, tempo, sabedoria e paciência: são estes os
únicos ingredientes. Nenhum dele foi inventado nos dois últimos milénios. Se
leva muito tempo a fazer, também dura muito tempo. No site diz-se que a uvada "pode ter longa duração, sendo perfeitamente
consumível ao fim de dois, três ou mais anos, altura em que pode ser fatiado ou
cortado aos cubos".
A Maria João e eu rimo-nos sempre que lemos este parágrafo porque a
mais longa duração que uma tigela de uvada atingiu entre nós foi cerca de duas
horas. É deliciosa demais para guardar mais do que uma semana. Só depositando
uma dúzia de tigelas num cofre pré-programado só para abrir em 2015 é que
poderíamos provar os provavelmente espantosos cubinhos de uvada.
Aqui se vê em prática que o tempo, só por si, é um investimento.
Uma receita dura milénios, leva um dia inteiro a fazer e, mesmo assim, num
"ambiente arejado e seco", pode durar mais de três anos.
Os ingredientes da uvada estão todos ali ao pé da cozinha da Dona
Celeste: as vinhas e as macieiras. Nem é preciso ir comprar um pacote de
açúcar. É incrível. Até no meio de um pomar de marmeleiros se alguém quiser
fazer marmelada tem de ir buscar açúcar.
Como se diz no site, a uvada "é um testemunho de uma economia
frugal, de tempos em que as famílias viviam essencialmente do que produziam nas
suas terras". O açúcar só existe há poucos séculos e até há pouco tempo o
preço era exorbitante. A uvada é muito mais antiga do que o açúcar e, dadas as
tendências do tempo presente, muito mais moderna.
As compotas portuguesas de produção artesanal são muito, muito
boas. Não se esquecem certos doces de ginja ou de tomate, tal a profundidade do
sabor que deixaram nas nossas bocas.
Mas também se deve celebrar a uvada e outros doces feitos só com os
açúcares das nossas uvas - ou com mel. A uvada tem um sabor misterioso, apurado
e inesperado. Basta uma colherada e fica-se acólito toda a vida. Toda a santa
vida.
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