Reserva da Biosfera e Património da Humanidade,
Rubane é uma ilha paradisíaca onde foi instalado um hotel em troca de telhados
de zinco e pirogas a motor para os habitantes da tabanca. Há um certo luxo no
Ponta Anchaca, mas talvez contem mais as paisagens indizíveis em redor e as
histórias que contam os bijagós.
Mitos, tabus e tradições ancestrais, florestas
sagradas, poderes do além. Por detrás do cenário paradisíaco, da sombra das
palmeiras e das praias desertas de água cálida e areia fina, a ilha de Rubane
esconde segredos que bem podiam ser uma lenda. Mas não são. Neste pedaço do
Atlântico não se podem fazer construções definitivas, travar lutas ou enterrar
mortos. Não se pode viver para sempre. Rubane pertence aos bijagós - uma das
mais de 30 etnias da Guiné-Bissau que deu o nome ao arquipélago de que polvilha
a costa do país - e são eles quem ditam as regras da sua ocupação. Ou ditavam.
Ilha sagrada, classificada pela UNESCO como Reserva da Biosfera e Património da
Humanidade, a pobreza dos seus donos fez com que a cedessem à exploração
turística em troca de telhados de zinco e pirogas a motor.
Quintino passeia à beira-mar junto às cabanas de
palha seca construídas pela tabanca de Enem para o período do cultivo de arroz
(a base da alimentação dos guineenses). O sorriso esburacado denuncia-lhe a
queda dos primeiros dentes de leite. Não tem metro e meio de gente mas veste
uma camisa de "homem grande" (adulto em crioulo), desabotoada e suja.
Mais as cuecas verde garrafa para tapar o sexo. Com cinco anos, é o membro mais
novo da comunidade em Rubane. "Anualmente vêm de Bubaque [a principal
cidade e ponto de comércio de todo o arquipélago] pessoas das tabancas de
Bijante, Enem e Ancadona para a plantação de arroz, milho e inhame e a produção
de óleo e vinho de palma. Constroem casas provisórias, junto às terras que
decidiram cultivar, e aí ficam durante cerca de seis meses. Ninguém pode viver
aqui definitivamente, há uma série de rituais que têm de ser cumpridos",
explica Abas Câmara, um bijagós de Bubaque e chefe de pessoal do hotel Ponta
Anchaca.
Rubane é umas das reservas agrícolas dos bijagós,
aqui produzem parte da comida que os alimenta ao longo do ano, e um sítio
nacional sagrado. Ou seja, um local habitado por divindades e espíritos
naturais e ancestrais, que as pessoas vêem no momento do nascimento e sobre o
qual ouvem múltiplas histórias contadas pelos mais velhos. Com grande
importância simbólica e social, os lugares sagrados pertencem às comunidades
étnicas da Guiné-Bissau, que acreditam na punição divina para aqueles que
violarem as suas regras.
Na ilha de Rubane não se pode derramar sangue ou
enterrar corpos, nem que sejam de animais. Os macacos e ratos da Gâmbia têm a
entrada interdita, por serem considerados pragas para as culturas, e só são
autorizadas construções que possam ser demolidas em minutos. Nada do que ali
acontece deve deixar marcas definitivas.
É por isso que quando chega a altura de preparar a
terra para a vinda das primeiras chuvas, no início de Maio, os bijagós fazem de
tudo para não irritar as divindades: "Antes do cultivo do arroz, o régulo
[líder da tabanca] realiza uma cerimónia em Bubaque para que, caso algum homem
se corte com a catana, ou faça uma ferida durante os trabalhos agrícolas, não
seja castigado", conta Abas. Se alguém sangrar ou morrer em Rubane, é
imediatamente levado para casa e a tabanca à qual pertence mata uma vaca e oferece
tabaco ao comité de anciãos (constituído pelos homens mais velhos da
comunidade), uma forma de pedir desculpa às entidades superiores.
Fartos de
lutas
É final de Fevereiro, Quintino e a sua família são
os últimos a abandonar a ilha, depois de concluída a colheita. Ficaram para
fazer óleo de palma, usado em quase todos os pratos da cozinha bijagós, e vinho
de palma, uma bebida alcoólica barata servida nas cerimónias religiosas e
festas tradicionais.
O ano agrícola tinha já começado há onze meses. Os
primeiros homens chegaram em Abril para cortar e queimar o mato. Depois foi a
vez de as mulheres semearem e defenderem as culturas dos ataques de macacos e
pássaros - a cada mulher casada coube uma parcela de terreno com arroz para os
seus filhos. Se um homem tem mais de uma esposa, deve preparar campos
diferentes e um terreno maior para as necessidades de toda a família. Na
periferia dos arrozais, crescem também milho, melancia, abóbora ou inhame, mas
só em pequenas quantidades para o sustento do dia-a-dia. Tudo é feito em
conjunto. Independentemente do dono da terra, as pessoas trabalham os campos
umas das outras. Em troca, recebem comida (aqueles que possuem mais arroz são
considerados os mais abastados e os que preparam as maiores e melhores refeições),
tabaco e vinho de palma.
O dia-a-dia dos agricultores coabita com o luxo do
Hotel Ponta Anchaca, a cerca de meia hora a pé, desbravando floresta, do local
onde Quintino citava de cor nomes de jogadores de futebol famosos cravados num
tronco de árvore: "M-e-s-s-i, F-i-g-o, M-a-r-a-d-o-n-a,
R-o-n-a-l-d-o". Por 130 euros por dia, os hóspedes têm direito a pensão
completa, piscina com vista para o mar e uma praia quase exclusiva, onde também
podem fazer pesca. As excursões às outras ilhas do arquipélago são pagas à
parte mas não falta quem queira ir ver os hipopótamos a Orango, as tartarugas a
João Vieira ou simplesmente passar um dia a pescar na minúscula Kéré. Poucos
são os que se aventuram para dentro de Rubane e conhecem a sua essência.
Durante muito tempo, foi uma ilha que recebia por
ano menos de mil pessoas, todas habitantes das tabancas de Bijante, Enem e
Ancadona que, entre si, dividiam em três um território demarcado pelo curso dos
rios. A promessa de uma vida melhor fez com que, no início da década passada,
os Bijagós cedessem parte de Rubane para exploração turística. Mais uma vez,
foram os deuses que tiveram a palavra final: "A Solange [empresária
francesa dona do Ponta Anchaca] vestiu as tradicionais saias bijagós e foi levada
com as mulheres das três tabancas para a Baloba [santuário onde é celebrada
toda a vida espiritual desta etnia e se tomam as principais decisões que
afectam a comunidade]. Aí, realizaram uma cerimónia para decidir se ela podia,
ou não, construir o hotel. Cortaram a garganta de uma galinha e colocaram
várias calabaças em fila no chão. Cada uma correspondia a "sim" e
"não"", recorda o chefe de pessoal, Abas. A calabaça onde a
galinha deu o último suspiro ditou o destino da ocupação de Rubane.
Em troca, todos os telhados de palha da tabanca de
Enem - à qual pertence o pedaço de paraíso ocupado pelo Ponta Anchaca - foram
substituídos por zinco e as artesanais pirogas dos seus pescadores ganharam um
motor e uma nova vida, mais rápida e barulhenta. Uma troca que parece pouco
justa a muitas das organizações não governamentais que trabalham na
Guiné-Bissau: "É necessária legislação por parte do Estado e dos Governos
para mediar estes processos de transacção", analisa o relatório intitulado
Identificação e caracterização dos sítios naturais sagrados terrestres e
marítimos na África Ocidental sobre o caso específico da Guiné-Bissau. A
extrema pobreza e o analfabetismo dos locais, prossegue o documento, são
"factores que pode levar as comunidade a ceder os seus territórios em
troca de bens imediatos e de pouco valor".
À maioria dos turistas que visita Rubane, este é
um tema que passa ao lado. No aeroporto Osvaldo Vieira, em Bissau, apanha-se
uma avioneta com lotação para três pessoas em direcção a Bubaque. Aí, antes de
aterrar, o piloto sobrevoa duas vezes a estrada de terra batida que faz de
aeroporto, para que as mulheres que ali passam a carregar água e os animais
tenham tempo de se desviar. Fica a faltar a viagem de meia-hora de barco que
termina na praia do Ponta Anchaca. Nessa altura ouvem-se "ah!" de
espanto. Pela paisagem que corta a respiração, pelo tamanho gigante dos peixes
que saem das canas, pela sensação de estar a pisar um sítio virgem que, à
excepção de duas unidades hoteleiras ali montadas, pouco deve ter mudado desde
a sua origem.
Os quartos do hotel ficam em casas forradas de
palha, com uma forma que imita a das cabanas construídas pelos bijagós. O
mobiliário é tradicional, feito pela comunidade, e os trilhos de areia, que
fazem a ligação entre a recepção e as casas, estão repletos de esculturas
típicas de madeira, verdadeiras obras de arte muito procuradas por turistas que
representam uma receita suplementar para as famílias.
A dona do Ponta Anchaca tentou conservar a traça
local e, apesar de se ter incompatibilizado com as tabancas de Bijante e
Ancadona - que a acusam de falta de apoio - parece manter uma relação cordial
com os bijagós: "Quando foi o golpe de Estado, trouxe muitos meninos de
Bubaque aqui para o hotel, para estarem protegidos. Depois até os levou a
passar férias no Senegal, no La Maison Bleue [um hotel no sul do país do qual é
proprietária]. O Rivaldo é um desses meninos, a Solange afeiçoou-se a ele e
quase o adoptou. Vem cá passar todos os fins-de-semana", confidencia Abas.
Conhecidos como hostis e guerreiros, os bijagós
são um povo que está farto de lutas. Primeiro foram os ingleses e alemães, que
se tentaram apoderar do seu território, mas acabaram por ter de o abandonar
após vários combates sangrentos. Depois vieram os portugueses, que requisitaram
os negros do arquipélago para ajudar na construção de casas, estradas e portos
e trabalhar em quintas experimentais. "Uma verdadeira catástrofe"
para um povo que estava habituado a "uma vida livre e independente nas
ilhas, com abundância de frutos e espaço livre à sua volta", descreve
Luigi Scantamburlo no livro Etnologia dos Bijagós da ilha de Bubaque. Uma
imposição que viria a destruir para sempre a agricultura cíclica que possuíam e
pela qual ainda hoje pagam dividendos: nunca mais conseguiram deter a expansão
de plantas selvagens no mato próximo das tabancas, levando à redução da área
cultivada.
Apesar de cada vez mais visitado, o Arquipélago
dos Bijagós - e as suas mais de 80 ilhas - está longe de receber turismo em
massa e mantém-se impermeável a grandes transformações. Sente-se que pouco
mudou desde 1471, quando o italiano Gracioso Benincassa mapeou pela primeira
vez algumas destas ilhas, na altura apelidadas de Ussamansa, Buamo e Buauo. Na
paisagem, no ar que se respira, no modo de vida das pessoas.
Por isso, passar férias em Rubane pode significar
pernoitar num hotel de luxo, com comida de aspecto gourmet e actividades
trendy, daquelas que podem ser realizadas em qualquer lugar do mundo. Mas
também pode ser isso e muito mais: passear pela floresta, tentar comunicar com
as pessoas - que falam o dialecto bijagós (nenhuma entende português e é raro
falarem crioulo)-, aceitar as refeições de arroz com caldo de chabéu que
amavelmente oferecem ou fugir das iguanas - que, apesar de inofensivas,
caminham demasiado perto dos humanos - são algumas das opções. Os mais
aventureiros podem ainda apanhar uma piroga tradicional, de segurança duvidosa,
e deixar-se levar por um pescador local.